Thursday, January 04, 2007



Ouvindo Chico Buarque





Deixei sobre a noite os meus olhos de mulher nua. A fome é a tramela que se daria ao meio-dia. Eu ouvindo Chico e comendo o último pedaço de doce, preparando o almoço. Ela catando lixo. Um outro pedaço, sendo esse o da história, se dá como um papel rasgado em minha memória, diz que a fome e a seca é a cultura hostil do povo Nordestino. Triste passado sobrevivendo nas ruas. Mas gosto de bater a máquina como quem abre a caixa de Pandora e redescobre nas coisas simples e tristes da vida uma razão pra não chorar.


Escrevo. Escrevo para que nada tenha a ver com o que escuto, se ouço Chico enquanto ela, da janela em que a fito, ainda cata lata e resto de comida. E eu com um projeto na cabeça, sem grana, calça desbotada, minha mente a mil e ela... Mas a dor da gente, como nos fala a música, não sei no jornal, talvez o nome da catadora fosse Joana. Assim combinaria na composição de um soneto. Tento rabiscá-lo. Ruim, o soneto, achei por bem rasgá-lo. É, o poema é tão ruim quanto a Quadrilha que fala Drummond que não nos fala em sua letra daqueles que governam o Brasil. Quadrilha. Somos todo governados por uma quadrilha de paletó e gravata. Quanto ao poema do velho Carlos apenas nos diz bem o que é banal e poético na ponta da língua portuguesa: “João amava Tereza que amava Raimundo que amava Maria que amava Lili que não amava ninguém.” O poema, escutem baixinho, diz coisas que o poema quer dizer e que o coração de quem lê (por vezes) não sente ou não ousa parodiar. Talvez, queira Deus, que eu esteja errado.


O sentimento está sempre à retaguarda, está sempre a esquiva da serpe daquilo que se vê por traz do vidro, a luminosidade transcendente do ser, a confluência da música ou o instrumento melódico da fome. Ela ainda catava e agora comia o lixo. Era o lixo, urubu de gente disputando migalhas das sobras do natal. Eu a reflexão de um sentimento que nos assola. Ela de dedo socado no nariz, as mão sujas, a mente torpe sob uma garrafa de cana. Parecia bêbada como a política do país. O que sabia? De onde vinha? Para onde ia? Cheguei a imaginar: talvez no passado fosse uma mulher muito rica, perdera tudo ou nascera em berço pobre e esplêndido. Esplêndido. Gritou minha mente imaginando-a gritar: Eu sou brasileira – esplêndido! Seus cabelos sujos, as roupas rotas, pés no chão. Detalhe é que ela transportava em seu carrinho de mão vermelho uma criança. Os olhos azus da criança me fez lembrar os azus olhos de um certo menino que morrera crucificado. Ora, já passara o natal e eu ouvia Chico, queria mesmo que o compositor pudesse escutar essa prosa sem jeito de samba. Mas a tristeza não presta. Dizia a outra estrofe, em outra música. E que a alma exploda. Mas a velha parecia beijar o chão como se vivesse de brisa. Maltrapilha, maltratada. Cabeça erguida – brasileira. Mas foi bonita a festa pá, ficamos aqui contentes vendo tudo pela TV até que a música de teu governo acabe. Tive vontade de correr até ela e pedi-la para lavar toda a sua roupa suja no meio da rua. Escancarasse, quebrasse todos os vidros dos carros, chutasse a avenida, chamasse por seu marido, o Pedro Pedreira, que é certo a esperava em um trem a caminho de sua cidade. Enquanto o trem não vem, não vem e se vier que venha e não volte nunca mais.